“É livre a manifestação do pensamento e da expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, sendo vedado o anonimato. (CF 88).”

4 de dez. de 2011

Os Cartórios e a responsabilidade do Estado


“Forçoso observar, ainda, que durante tempo e espaço considerável, os atos praticados pelos delegatários dos serviços notariais e registrais, produzem efeitos jurídicos, não raras vezes, superiores à própria vida de seus autores, e estes podem ou não ter sido agraciados com recursos suficientes para reparar eventuais danos causados a terceiros durante suas gestões.”
“Não seria censurável, portanto, advogar pela tese da responsabilidade objetiva do Estado pelos atos danosos de seus delegatários, doutrina esta que se mostra mais adequada à idealização constitucional do instituto da responsabilidade civil Estatal.”

A responsabilidade civil de notários e registradores

Bruno Francisco Prado Rocha*

Clique no texto para aumentar
O Estado seria objetivamente responsável por indenizar o terceiro prejudicado, por ser este o titular real da atividade delegada, cabendo-lhe obrigatória ação de regresso contra o delegatário, pela responsabilidade subjetiva.
A evolução continuada do Direito, modulada por transformações processadas por um atuante poder legiferante e por visionárias e sensíveis interpretações judiciais – quanto aos princípios jurídicos que em sua órbita, por vezes, colidem-se, e à aplicação e ao alcance dos efeitos das normas constituídas – é o que positivamente se espera de um Estado Democrático de Direito.
A sociedade cria o Direito, estabelecendo diretrizes verificáveis, conduzindo-se por suas necessidades e desejos, seus freios e contrapesos.
Neste contexto, insere-se a atividade notarial e registral contemporânea – contígua ao vigente ideário princípio-normativista constitucional, marchante rumo à moralidade e à Função Social dos atos e fatos atinentes à Administração Pública – como notável expoente de um saber jurídico moderno, participativo e integrador, em uma eterna busca da segurança jurídica para os atos de uma sociedade ainda carente de respeito e de harmonia social.
A vontade popular se preocupou com os caminhos trilhados pelos Tabelionatos e Registros Públicos, a começar pela mudança no que tange ao ingresso na atividade, privilegiando a ideologia do mérito[1] para o ingresso em órgãos estatais, com a observância dos princípios da legalidade, impessoalidade e igualdade, moralidade e eficiência[2], privilegiando os melhores para a assunção de funções públicas, contrapondo-se ao retrógado e injusto privilégio hereditário e de apadrinhamento político, passando a exigir, ainda, que tais serviços lhes fossem prestados de forma segura, apropriada, eficiente e eficaz, norteados pela cordialidade e urbanidade de seus prestadores.
É precisamente o que nos doutrina o § 3º, do art. 236, da CR/88, determinando que o ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, respeitando-se a ordem de classificação, não se permitindo que haja vacância, por mais de seis meses, de qualquer serventia, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, vez que conforme indubitavelmente disciplinado no caput do referido artigo, os serviços notariais e de registro são públicos, não obstante, exercidos em caráter privado por delegação do Poder Público.
Procedidas estas considerações, é de se salientar que cabe a este Público Poder, com exata observância dos princípios e normas jurídicas reguladoras da matéria, a outorga da delegação dos serviços notariais e registrais aos particulares, de forma originária e pessoal, restando, portanto, contextualizada a restrição da responsabilidade dos delegatários apenas aos atos que forem praticados, pessoalmente ou por seus prepostos escolhidos, durante o período em que estiverem à frente da serventia que lhes foi delegada, não sendo responsáveis, por conseguinte, pelos atos pregressos praticados pelos titulares anteriores, bem como quanto aos seus efeitos observados no tempo e espaço.

Destaca-se, ademais, que não é o “cartório” que é delegado ao particular para ser exercido em caráter privado, mas sim os serviços, as atividades notariais e registrais, de caráter eminentemente público e de amplo interesse social para a coletividade.

O “cartório”, portanto, seria apenas abstração jurídico-conceitual, estrutura patrimonial não revestida de personalidade jurídica, parte ilegítima para figurar no pólo ativo ou passivo de demandas judiciais. Este é o entendimento predominante atualmente em nossa Corte Superior, fruto de dignas absorções evolutivas procedentes de decisões judiciais difusas, sensíveis e renovadoras do Direito.

Neste diapasão, o Acórdão proferido no Agravo de Instrumento nº 0000394-29.2010.8.19.0009, da Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Relator: DES. MILTON FERNANDES DE SOUZA, passim, citando jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, de lapidar contorno, ensina-nos que
o tabelionato não detém personalidade jurídica ou judiciária, sendo a responsabilidade pessoal do titular da serventia.  No caso de dano decorrente de má prestação dos serviços notariais, somente o tabelião à época dos fatos e o Estado possuem legitimidade passiva”. REsp nº 545.613/MG (4ª Turma, Relator Ministro César Asfor Rocha, DJ de 29/06/2007. (grifo nosso).
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO SERVENTIA EXTRAJUDICIAL. ILEGITIMIDADE PASSIVA APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS. CARTÓRIO NOTARIAL E REGISTRAL. ILEGITIMIDADE PASSIVA. O cartório não tem personalidade jurídica e por isto, não tem capacidade processual para figurar no pólo passivo, embora o notário responsável o possa. Em que pese a atividade do notário, seja exercida por delegação do Poder Público e sobre a fiscalização deste, é de caráter privado. Sendo assim, a responsabilidade daquele é pessoal, individual, pelos próprios atos ou pelos atos de seus prepostos e, em conseqüência, não abrange os atos de seus antecessores. RECURSO DESPROVIDO. 0003549-73.2003.8.19.0045 (2004.001.18747 – DES. JORGE LUIZ HABIB – Julgamento: 14/09/2004 – DÉCIMA OITAVA CÂMARA CÍVEL/RJ.
Quanto à responsabilidade civil do Estado, a sociedade optou pela apuração objetiva da mesma, notadamente observada pelo regramento normativo entalhado no § 6º, do art. 37, da CR/88, regulamentador da responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos, devendo estas pessoas jurídicas de direito privado – vinculadas ao Estado, especialmente pelo condão dos institutos da permissão ou concessão – responder pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurando o direito de regresso contra o responsável efetivo pelo ato, nos casos de dolo ou culpa.
Destaque-se que esta concepção não deve ser aplicada às serventias notariais e registrais, conforme já pacificado no Supremo Tribunal Federal[3], vez que as mesmas não são detentoras reais destes importantes serviços prestados aos usuários, não são pessoas jurídicas de direito público, e muito menos sociedades empresárias prestadoras de serviços públicos.
Nota-se que ao se tentar enquadrar os delegatários de serviços notariais e registrais nos preceitos constitucionais que regulam a responsabilidade objetiva dos agentes que prestam serviço público, de formaprivada[4], conclui-se pela idéia de se tratar tais delegatários, de agentes sui generis, marcados por peculiaridades próprias que os colocam em categoria jurídica singular, afastando, desta forma, a aplicabilidade do referido diploma legal às atividades públicas delegadas em questão[5].
Forçoso observar, ainda, que durante tempo e espaço considerável, os atos praticados pelos delegatários dos serviços notariais e registrais, produzem efeitos jurídicos, não raras vezes, superiores à própria vida de seus autores, e estes podem ou não ter sido agraciados com recursos suficientes para reparar eventuais danos causados a terceiros durante suas gestões.
Não seria censurável, portanto, advogar pela tese da responsabilidade objetiva do Estado pelos atos danosos de seus delegatários, doutrina esta que se mostra mais adequada à idealização constitucional do instituto da responsabilidade civil Estatal.
Há posicionamentos doutrinários sólidos, inclusive do Des. RICARDO DIP, que refutam a tese de os delegatários de serviços notariais e registrais se submeterem às sanções do § 6º, do art. 37, da CF/88, vez que não poderiam se equiparar às pessoas jurídicas ou sociedades empresariais.
Tanto o é assim que a responsabilidade dos delegatários – pessoas naturais – deve se limitar apenas aos atos praticados durante sua gestão, vinculando-se a responsabilidade civil ao caráter pessoal do prestador dos serviços. Cediço é que a pessoalidade da responsabilidade é característica das pessoas naturais, escolhidas pelo Poder Constituinte para representar com exclusividade o Estado na prática das atividades notariais e registrais.
Ainda, segundo ASSUMPÇÃO[6], no que se refere à responsabilidade civil dos delegatários, há três correntes doutrinárias que ainda ensaiam decisões colidentes em nossos Tribunais.
Uma primeira corrente – patrona da responsabilidade objetiva dos titulares de delegação – que vem perdendo alento e atração entre nossos julgadores e doutrinadores – pela qual a reparação de danos causados a terceiros, direta ou indiretamente, deve ser apurada apenas pela constatação do dano e seu nexo de causalidade com o ato, cabendo aos titulares das serventias, o eventual direito de regresso contra seus prepostos, sob a responsabilidade subjetiva.
Contudo, há diversas decisões judiciais acompanhando uma segunda corrente que, ao contrário da primeira, entende ser subjetiva a responsabilidade dos delegatários pela prática de atos causadores de danos a terceiros, havendo a necessidade de o prejudicado provar cabalmente o dano, nexo de causalidade e a culpa ou dolo do titular responsável pelo ato para se exigir a reparação.
Exalta-se, ademais, uma terceira corrente – mais afinada com a evolução natural da sociedade e do Direito contemporâneo – firmando o entendimento no sentido de que os atos dos serviços notariais e registrais que causarem prejuízos a terceiros, submetem-se à responsabilidade objetiva do Estado, cabendo ao mesmo, em ação de regresso, pleitear obrigatoriamente do titular, sob a égide da responsabilidade subjetiva, o ressarcimento da indenização efetuada à vítima do dano, apurando-se eventual responsabilidade administrativa, cível e criminal de seu agente delegado.
Nestes termos, destacam-se algumas normas direcionadoras do tema. Primeiramente, necessário se observar o estabelecido no art. 28, da Lei 6.015/73, cuja interpretação deve-se amoldar às importantes conquistas interpretativas do Poder Judiciário, decretando que:
Além dos casos expressamente consignados, os oficiais são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que, pessoalmente, ou pelos prepostos ou substitutos que indicar, causarem, por culpa ou dolo, aos interessados no registro. (grifo nosso).
Ao se regulamentar o § 1º, do art. 236, da CR/88, com a edição da Lei 8.935/94, criou-se enorme divergência doutrinária e jurisprudencial quanto à responsabilidade civil e criminal dos delegatários, em função da redação do artigo 22, que assim sanciona:
Os notários e oficiais de registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos. (grifo nosso).
Aos que entendem se tratar de responsabilidade objetiva dos delegatários e subjetiva apenas para osprepostos, pelo exposto no art. 28, da Lei 6.015/73, haveria apenas uma adequação da nova norma, ou na pior das hipóteses, tal artigo, numa interpretado direcionada pela responsabilidade subjetiva do delegatário, estaria revogado de forma tácita.
Por lapso temporal considerável, entendeu parte significativa do Judiciário, que somente haveria responsabilidade subjetiva aos prepostos, não havendo espaço para interpretação que a estendesse aos delegatários, que responderiam sempre objetivamente, conforme ocorre em apurações calcadas no art. 37, § 6º, da CR/88.
Todavia, existem os que entendem que o art. 22, Lei 8.935/94, sistematicamente interpretado, amolda-se perfeitamente ao art. 28, da Lei 6.015/73, estendendo a subjetividade da responsabilidade, tanto aos titulares quanto aos prepostos, de forma que, em todos os casos, haveria a necessidade da apuração da responsabilidade com a comprovação do dano, seu nexo de causalidade com o ato praticado, bem como o dolo ou a culpa do delegatário. Portanto, não haveria revogação da regra estatuída na Lei 6.015/73, mas sim, mera justaposição legal.
Neste contorno, resta-nos destacar o art. 38, da Lei 9.492/97 que, em sentido gramatical mais preciso, doutrina:
Os Tabeliães de Protestos de Títulos são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou Escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso”. (grifo nosso).
Vê-se, neste último regramento, cronologicamente mais recente que os anteriores, que o legislador se pautou pelo conceito da responsabilidade subjetiva de tais delegatários, contrapondo-se expressamente à idéia daresponsabilidade objetiva.
Entendimento em sentido diverso, acatando-se ofuscadamente a normatização positivista – já superada por axiomas derivados de uma evolução hermenêutica natural – acarretaria em um tratamento não isonômico entre o delegatário do tabelionato de protesto e os demais notários e registradores, diferenciação esta que não se deve abonar.
Dessa forma, concluindo-se pela responsabilidade subjetiva dos delegatários, aplicando-se a terceiracorrente aos casos de responsabilidade civil – linhas atrás explanada – concomitantemente à regra do art. 37, § 6º, da CR/88, no que não lhe for contrária, haver-se-ia uma lógica legal de cadeia de regressos.
O Estado seria objetivamente responsável por indenizar o terceiro prejudicado, por ser este o titular real da atividade delegada, cabendo-lhe obrigatória ação de regresso contra o delegatário, pela responsabilidade subjetiva e em respeito ao devido processo legal, devendo ser provado quanto ao mesmo o dolo ou a culpa, e este teriafacultativa ação de regresso contra seu preposto, se for o caso, apurando-se a responsabilidade subjetiva pelo ato gerador do dano observado.
Por fim, mas de não menor importância, destaca-se que notários e registradores em geral, não são capazes de securitizar todos os atos que são praticados em suas serventias. Não lhes são exigidos, quando da outorga da delegação pelo Poder Delegante, nenhuma caução para o exercício desta atividade jurídica, diferentemente do que se observa quanto às exigências procedidas nos institutos da permissão e concessão.
Ao optar o Estado pela não exigência de garantia real dos delegatários para prática de atos de tamanha importância social – apenas orientando e fiscalizando-os – com a finalidade de viabilizar tais serviços à sociedade – muitas vezes de forma gratuita – atraiu para si a responsabilidade direta por todo dano gerado por esta atividade delegada, com conseqüente repulsa à aplicação das sanções do art. 37, § 6º, da CR/88 aos notários e registradores, por total inadequação ao fim social perseguido.
Destarte, a vítima do dano poderia se frustrar pela falta de recursos do responsável pelo ato danoso, mesmo após percorrer toda a extensão judicial, dificultada pela apuração subjetiva da responsabilidade do delegatário.
Pelo desejo social normatizado, prudente é o entendimento que concede à vítima do dano o direto de acionar diretamente o Estado, real detentor de tais serviços, por lhe ser mais benéfico e menos oneroso, vez que neste caso se apuraria a responsabilidade objetiva, o que se mostra mais coerente com o nosso sistema constitucional[7].
Em complementação ao defendido nesta apertada síntese, de forma a se evitar onerosas disputas pelos corredores judiciais e em consonância ao Poder de Polícia do Judiciário, dever-se-ia haver alguma espécie desecuritização[8] dos atos notariais e registrais.
Como exemplo, poderia se reservar parte dos valores recolhidos a título de Taxa de Fiscalização Judiciária[9] ou qualquer outra Taxa cobrada a título de Poder de Polícia, para a criação de um fundo garantidor do risco inerente à atividade, não como forma de estimular uma eventual irresponsabilidade dos delegatários, vez que haveria obrigatória ação de regresso em desfavor dos mesmos, mas para garantir ao Estado – entendido aqui como o administrador da vontade e dos anseios populares, garantidor final do ideal de Justiça Social – um mecanismo eficiente para resguardar direitos de terceiros prejudicados, em atenção à realidade e necessidades prementes das variadas relações interpessoais de uma sociedade, digna condutora de um Direito em constante evolução.

Fonte:
*Bruno Francisco Prado Rocha
Oficial Registrador e Notário da Serventia de Fortuna de Minas(MG). Bacharel em Direito desde 2003. Pós-graduado em Direito Empresarial pela FADOM – 2004. Pós-graduando em Direito Notarial e Registral pela Faculdade Milton Campos.

Nenhum comentário :

Postar um comentário

Você poderá deixar aqui sua opinião. Após moderação, será publicada.

Contador de caracteres